segunda-feira, 26 de março de 2012

Adequação Típica – Porte de Arma de Fogo

            No ano de 2003 começou a viger em nosso ordenamento jurídico a lei nº 10.826/03, que disciplinou matéria acerca do registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição.
           No campo criminal, não foi esta lei que tornou a conduta de portar arma de fogo em crime. Anteriormente, em 1997, a lei nº 9.437 já havia tornado a antiga contravenção penal de porte de arma de fogo em crime, ocorrendo a chamada “novatio legis in pejus”. Assim, para aqueles que praticaram a contravenção penal, haveria a ultra-atividade da lei quanto à conduta, vez que é benéfica a nova redação legal.
            Disciplinava o artigo da 10 da lei  nº 9.437 que:
“possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, expor à venda ou fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda e ocultar arma de fogo, de uso permitido, sem a autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
Pena - detenção de um a dois anos e multa”.
            Sem dúvida, como já dito houve uma agravação da conduta anteriormente definida como contravenção penal.
            Houve imperfeições na lei, tal como pode ser demonstrada através da leitura do art. 10, o qual equipara as condutas de “portar arma de fogo” e de “possuir arma de fogo”.
            Aprimorou-se tais imperfeições com a edição do atual Estatuto do Desarmamento (lei nº 10.826/03), sendo buscado inclusive proibir o comércio de armas de fogo e munições no Brasil por um referendo popular.
            Com certeza a presente lei não surtiu os efeitos queridos pelo legislador. A diminuição da violência pode ter ocorrido, mas não exclusivamente pela nova redação legal, já que a criminalidade em nada se preocupa com a possibilidade de cumprir pena maior ou menor pelo porte ou posse de arma de fogo.
            Mas a grande questão se dá com relação ao entendimento jurisprudencial acerca de determinados casos que envolvem arma de fogo: arma de fogo desmuniciada; arma de fogo quebrada; arma de fogo desmontada e arma de brinquedo. O que nossos tribunais entendem sobre o assunto. Todas essas condutas são crimes?

            Arma de fogo sem munição
            É entendimento da Quinta Turma do STJ que o porte de arma de fogo desmuniciada configura conduta típica, vez que por ser crime de perigo abstrato a segurança pública e paz social são postas em perigo pelo simples porte da arma.
            Neste sentido o HC 178320 / SC de relatoria da Min. Laurita Vaz:
“HABEAS CORPUS. PENAL. PORTE ILEGAL DE ARMA ART. 14 DA LEI N.º 10.826/03 (ESTATUTO DO DESARMAMENTO). TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ATIPICIDADE. INEXISTÊNCIA. PERIGO ABSTRATO CONFIGURADO. DISPOSITIVO LEGAL VIGENTE.
1. Malgrado os relevantes fundamentos esposados na impetração, este Tribunal já firmou o entendimento segundo o qual o porte ilegal de arma de fogo desmuniciada e o de munições, mesmo configurando hipótese de perigo abstrato ao objeto jurídico protegido pela norma, constitui conduta típica.
2. Desse modo, estando em plena vigência o dispositivo legal ora impugnado, não tendo sido declarada sua inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, não há espaço para o pretendido trancamento da ação penal, em face da atipicidade da conduta”.

            Por sua vez, a Sexta Turma do STJ diverge do entendimento trazido pela Quinta Turma do mesmo Tribunal. Vejamos a decisão proferida no HC 124907/MG pelo Ministro Og Fernandes:
“HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. ARMA DESMUNICIADA. ATIPICIDADE DA CONDUTA.
1. Na linha da orientação da Sexta Turma desta Corte, o fato de a arma de fogo estar desmuniciada afasta a tipicidade do delito de porte ilegal de arma de fogo.
2. Ordem concedida para, com base no art. 386, III, do CPP, absolver a paciente da acusação que lhe é dirigida por porte ilegal de arma de fogo de uso permitido”.

            Para a doutrina, Guilherme de Souza Nucci entende que o porte de arma de fogo desmuniciada é crime:
“Não aquiescemos com a posição daqueles que consideram fato atípico o porte não autorizado de arma de fogo, somente pelo fato de estar sem munição à vista (...) Ora, a conduta é igualmente perigosa para a segurança pública. Pode o agente carregar a arma de fogo sem munição e, ao atingir determinado ponto, onde está a vítima em potencial, conseguir munição das mãos de um comparsa” [1].
Para o STF, a questão relativa ao porte de arma de fogo desmuniciada é menos tormentosa, aceitando a tipicidade da conduta no caso de arma de fogo desmuniciada, ainda que o julgamento proferido no HC 99449/MG – 2009, de relatoria da ex Min. Ellen Gracie,  tenha sido pela atipicidade da conduta.
Necessário mencionar que, realizada a pesquisa sobre o tema [2], 12 dos 18 acórdãos encontrados foram julgados pela Primeira Turma, sendo pacífico o entendimento para esta Turma de que o porte de arma de fogo desmuniciada constitui infração penal, como se vê no acórdão proferido no HC 88757/DF de relatoria do Min. Luiz Fux:
“PENAL. HABEAS CORPUS. ESTATUTO DO DESARMAMENTO. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO (ART. 14 DA LEI Nº 10.826/2003). TIPO NÃO ABRANGIDO PELA ATIPICIDADE TEMPORÁRIA PREVISTA NOS ARTIGOS 30 E 32 DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO. VACATIO LEGIS ESPECIAL OU ABOLITIO CRIMINIS TEMPORÁRIA RESTRITA À POSSE DE ARMA DE FOGO NO INTERIOR DE RESIDÊNCIA OU LOCAL DE TRABALHO. ARMA DESMUNICIADA. TIPICIDADE. CRIME DE MERA CONDUTA OU PERIGO ABSTRATO. TUTELA DA SEGURANÇA PÚBLICA E DA PAZ SOCIAL. ORDEM DENEGADA
(...) 3. A conduta de portar arma de fogo desmuniciada sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar configura o delito de porte ilegal previsto no art. 14 da Lei nº 10.826/2003, crime de mera conduta e de perigo abstrato. 4. Deveras, o delito de porte ilegal de arma de fogo tutela a segurança pública e a paz social, e não a incolumidade física, sendo irrelevante o fato de o armamento estar municiado ou não. Tanto é assim que a lei tipifica até mesmo o porte da munição, isoladamente”.
Analisando a questão mais afundo, pode-se notar através das jurisprudências, embora seja crime o porte de arma desmuniciada, o porte desta arma, caso seja utilizada para o cometimento de crime de roubo, não pode ser levado em consideração para a aplicação de majorante do art. 157, § 2°, I do CP (posição pacífica no STJ).
            Ora, data venia, ouso discordar do posicionamento adotado e ir ao encontro do que o STF vem adotando, já que a arma de fogo, ainda que desmuniciada é apta a produzir lesões. A arma de fogo desmuniciada pode ser utilizada como arma branca imprópria, ou seja, embora não tenha sido criada para que o agente a utilize de forma a maximizar a força de seus golpes, ela poderá ser utilizada para tanto (utilização da arma para dar coronhadas).
            Outro ponto é que o art. 157, § 2°, I do CP não fala em arma de fogo, mas sim em arma. Desta forma, basta que o agente empregue arma que restará configurada a causa de aumento de pena.
            Assim, como já dito, entendeu o STF no HC 102.263/SP de Relatoria do  Min. Ricardo Lewandowski:
“EMENTA: PENAL. HABEAS CORPUS. ROUBO MAJORADO PELO EMPREGO DE ARMA DE FOGO. ARMA DESMUNICIADA. EXIGÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE SEU POTENCIAL OFENSIVO. IRRELEVÂNCIA. DESNECESSIDADE. CIRCUNSTÂNCIA QUE PODE SER EVIDENCIADA POR OUTROS MEIOS DE PROVA. CONTINUIDADE DELITIVA. REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE PELA VIA DO HC. PRECEDENTES. ORDEM DENEGADA.
I - É irrelevante saber se a arma de fogo estava ou não desmuniciada, visto que tal qualidade integra a própria natureza do artefato. Não se mostra necessária, ademais, a apreensão e perícia da arma de fogo empregada no roubo para comprovar o seu potencial lesivo. II - Lesividade do instrumento que se encontra in re ipsa. III - A majorante do art. 157, § 2º, I, do Código Penal, pode ser evidenciada por qualquer meio de prova, em especial pela palavra da vítima - reduzida à impossibilidade de resistência pelo agente – ou pelo depoimento de testemunha presencial. IV - A arma de fogo, mesmo que não tenha o poder de disparar projéteis, pode ser empregada como instrumento contundente, apto a produzir lesões graves. V - Ordem denegada”.
             
            Arma de fogo quebrada e arma de brinquedo
            Neste tópico é possível traçar entendimentos semelhantes entre a arma de fogo quebrada com a arma de brinquedo. Enquanto a primeira, por uma impropriedade, não possui aptidão para produzir disparo; a segunda não é arma de fogo.
            Portanto, quanto à arma de brinquedo, não há conduta típica com relação àquele que a porta, vez que o Estatuto não disciplinou com conduta típica o porte de arma de brinquedo ou simulacro.
            No caso da “arma de fogo quebrada”, ausente a elementar do tipo penal “arma de fogo” do estatuto do desarmamento. Ora, se uma “arma” não mais possui capacidade para deflagrar projéteis, não mais poderá ser considerada arma de fogo.
            Nucci entende que o porte de arma de fogo quebrada não é crime, já que “(...) cuida-se de delito impossível; a segurança pública não corre risco nesse caso (...)” [3].
            Ocorre que, neste caso, é necessário que seja constatada tal inaptidão por perícia, vez que a conduta de portar arma de fogo é, aprioristicamente, típica, não comportando exceções.
Assim vem decidindo o colendo Superior Tribunal de Justiça, basta analisar o HC n° 122.181/ES, de relatoria no Min. Og Fernandes:
“1. De acordo com o entendimento firmado no âmbito desta Sexta Turma, tratando-se de crime de porte de arma de fogo, faz-se necessária que a arma seja eficaz, vale dizer, tenha potencialidade lesiva. 2. No caso, a arma foi apreendida e periciada. Entretanto, o laudo técnico apontou a sua total ineficácia, vale dizer, descartou, por completo, a sua potencialidade lesiva. 5. Ordem concedida para absolver o paciente do crime de porte ilegal de arma de fogo”.
            Quanto ao STF, necessário discutir a Ementa do voto proferido pela ex Ministra do STF, Ellen Gracie, no RHC n° 97.477/RJ que traz o seguinte:
“EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. ARMA DESMUNICIADA E ENFERRUJADA. AUSÊNCIA DE EXAME PERICIAL. ATIPICIDADE.
Inexistindo exame pericial atestando a potencialidade lesiva da arma de fogo apreendida, resulta atípica a conduta consistente em possuir, portar e conduzir arma de fogo desmuniciada e enferrujada. Recurso provido”.       
            Peço vênia para discordar do entendimento em questão. Não é técnico partir do pressuposto que arma de fogo sem munição e enferrujada não seja apta para disparar projéteis que possam vir a causar lesão à bem jurídico.
            O entendimento no caso deveria ter sido o mesmo trazido no que tange à arma de fogo desmuniciada, ou seja, é crime o seu porte, ainda que não haja munição ao alcance do agente.
            O objetivo maior do estatuto do desarmamento é de retirar de circulação armas de fogo para que a população tenha mais segurança. Não importa se há munição ou não na arma, pois é crime de perigo abstrato.
           
             Arma de fogo desmontada
            Como já notado nos tópicos anteriores, a Quinta e a Sexta Turma do STJ dificilmente possuem entendimento convergente. E neste caso não é diferente.
            Por óbvio que a arma desmontada não oferece potencialidade lesiva, vez que arma é o conjunto de peças que, devidamente montadas, possa produzir o disparo de um projétil.
            Ocorre que, caso haja todas as peças a disposição do agente, ainda que no momento a arma não possua capacidade lesiva, ela poderá vir a ter. Sendo assim, o porte de arma desmontada, sem que esteja faltando qualquer peça, pode ser considerada conduta típica.
            É o que se pode observar da leitura do HC n° 120.279/SP da Quinta Turma do STJ, de relatoria do Min. Jorge Mussi:
“HABEAS CORPUS. REGIME PRISIONAL. CONDENAÇÃO POR PORTE DE ARMA DE FOGO COM NUMERAÇÃO SUPRIMIDA. SANÇÃO RECLUSIVA INFERIOR A QUATRO ANOS. IRRELEVÂNCIA. REINCIDÊNCIA. REGIME ABERTO. IMPOSSIBILIDADE. COAÇÃO NÃO DEMONSTRADA.
(...) 2. Consideradas favoráveis todas as circunstâncias judiciais, à exceção dos antecedentes, não pode tal circunstância, diante das particularidades do caso em concreto, servir para impedir o benefício, especialmente em se considerando que a arma encontrada em poder do condenado estava desmontada, oferecendo, por isso, menor potencial lesivo, que hoje o paciente conta com 68 (sessenta e oito) anos e a reincidência se deu em delito diverso do ora examinado”.
            Ora, de acordo com a Quinta Turma do STJ, o porte de arma desmontada não configura fato atípico, mas tão somente uma possibilidade de se conhecer uma menor reprovabilidade do delito pelo reduzido potencial lesivo de armamento.
            Desta forma, respeita-se a obediência de retirar de circulação qualquer tipo de arma de fogo que possa causar perigo a incolumidade pública e à segurança.
            Em contrapartida, a Sexta Turma do STJ possui entendimento diverso, trazendo a tese de que a arma desmontada sequer possui potencialidade lesiva reduzida, sendo atípica a conduta de porte de arma de fogo desmontada – HC n° 101.638/MS de relatoria do Min. Og Fernandes:
“HABEAS CORPUS. ARMA DESMUNICIADA E DESMONTADA. ATIPICIDADE. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. ORDEM CONCEDIDA.
I. No caso em julgamento, o paciente trazia uma arma desmontada. É evidente que não havia potencialidade ofensiva, porquanto arma desmontada não é arma. O paciente portava apenas partes de uma arma, que não lhe serviriam sequer para defender-se de um repentino ataque de algum animal selvagem”.

            Conclusão

Devemos tratar o tema da segurança jurídica não só no que diz respeito à irretroatividade da lei penal in pejus, ou da retroatividade da lei penal mais benéfica. Mas sim, analisá-la do ponto de vista jurisdicional.
De acordo com José Afonso da Silva, “a segurança jurídica consiste no conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das conseqüências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida” [4].
Ora, não só a lei deve observar questões relacionadas à segurança jurídica. A jurisprudência tem por objetivo observar o presente direito constitucional, vez que tem por objetivo a resolução constitucional de conflitos de acerca da interpretação de uma lei.
Outro ponto que deve ser analisado diz respeito à competência do STJ prevista no art. 105, III, “c” da CF - Compete ao STJ julgar em sede de recurso especial “as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais, ou pelos Tribunais dos Estados, do Distrito federal e Territórios, quando a decisão recorrida: der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro Tribunal”.
Pois bem, traz o presente artigo da constituição a competência do STJ em uniformizar jurisprudência. Ocorre que como será uniformizada a jurisprudência se o próprio STJ possui entendimentos divergentes sobre um mesmo tema.
A ausência de uniformização de jurisprudência gera uma verdadeira loteria no julgamento de qualquer indivíduo, trazendo consigo insegurança jurídica. Significa que, se o indivíduo estiver com sorte e sua ação constitucional (HC) ou recurso forem distribuídos para a Sexta Turma do STJ, por exemplo, será absolvido. Se estiver com azar e sua ação seja distribuída para a Quinta Turma do STJ será condenado.







[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 4ª ed. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2009. Pág. 87.
[2] Pesquisa realizada em 23.03.2012 no site http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28arma+e+desmuniciada%29&base=baseAcordaos
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 4ª ed. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2009. Pág. 87.
[4] SILVA, Jose Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26ª edição. Malheiros. Pag. 433.

2 comentários:

  1. De tudo que foi dito acima, necessario se faz ter em vista os conceitos petreos do Direio Penal, no que diz respeito ao crime impossivel bem como a tipicidade, sem o que estaremos falando em arbitrariedade juridica, com o juiz presumindo a tipicidade, e logo a culpa, fato que qualquer jurista ou operador do Direito devia repelir, por ilegal e imoral, típicos de regimes´totalitarios.

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  2. Me admira muito um jurista comoo Dr.Guilherme de Sousa Nucci estar a falar de porte de arma sem munição com a possibilidade (!) de alguem fornecer
    a munição para a arma. Acho um comentário formidavel na medida em que se completa, mediante presunção, o tipo juridico do crime, sem a menor cerimonia fazendo com que BECCARIA se vire
    no túmulo. É preciso SEMPRE ter em mente a DEFINIÇÃO de CRIME.

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