INTRODUÇÃO
Anteriormente denominado de “crimes contra os costumes”, o título VI da parte especial do Código Penal sofreu inúmeras modificações com o advento da lei 12.015/2009, inclusive alterando a denominação do título para “crimes contra a dignidade sexual”.
Guilherme de Souza Nucci trata que “referida alteração de nomenclatura indica, desde logo, que a preocupação do legislador não se limita ao sentimento de repulsa social a esse tipo de conduta, como acontecia nas décadas anteriores, mas sim à efetiva lesão ao bem jurídico em questão, ou seja, à dignidade sexual de quem é vítima deste tipo de infração”
.
Desta forma, a própria denominação ao título acerca da “dignidade” é reflexo direto do art. 1°, III da CF que trata da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil, acabando de vez com a questão até então adotada pela terminologia “costumes”, extirpando do ordenamento jurídico questões relacionadas ao preconceito quanto ao gênero sexual e dando maior ênfase à pessoa como sujeito de direitos.
Para José Afonso da Silva “(...) o conceito dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-los para construir ‘teoria do núcleo da personalidade’ individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana”
.
Sendo assim, é nítido que a novel legislação acerca dos “crimes contra a dignidade sexual”, não só trouxe à tona reformulações quanto ao tipos penais que serão apresentados no decorrer do desenvolvimento do tema, mas também quanto a alteração do bem jurídico protegido, que agora corresponde simetricamente à orientação constitucional.
Interessante que, do ponto de vista criminológico, a vítima não terá mais a proteção no tocantes aos “costumes sexuais” que a sociedade lhe impõe, mas sim à sua “dignidade sexual”, que pela denominação agora dada, nos parece de extrema relevância, onde o Estado, deverá protegê-los com maior eficiência, bem como apoiar as vítimas de tais delitos de maneira mais eficaz, evitando assim, eventual vitimização secundária (lentidão de um sistema criminal, bem como a exposição da vítima no decorrer do processo), bem como a vitimização terciária ( decorrente da omissão do Estado e da sociedade).
ART. 213 – ESTUPRO
Sem dúvida foi a alteração mais importante trazida pela reforma. Com a lei 12.015/2009 não se fala mais na figura típica do atentado violento ao pudor (antiga redação do art. 214 do CP), mas sim em uma junção dos artigos 213 e 214 do CP em um só, tratando ambas as condutas como crime de estupro.
1. Sujeitos da Infração: anteriormente a edição da referida lei, distinguiam-se os sujeitos passivos e ativos dos crimes referidos, ou seja, antes de agosto de 2009 o delito de estupro era um crime bipróprio, ou seja, eram exigidas qualidades especiais, tanto o sujeito passivo (somente mulher), quanto do sujeito ativo (somente homem). A mulher poderia figurar como sujeito ativo do crime, excepcionalmente, no caso de autoria mediata ou quando em concurso (participação) com homem – art. 29 do CP.
No que tange ao revogado art. 214 do CP (atentado violento ao pudor) tal qualidade dos sujeitos já não era necessária.
Estabelece o art. 213 do CP:
“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos89.
§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§ 2º Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos”.
Desta maneira, com a nova redação do art. 213 do CP, tanto o homem, quanto a mulher podem “constranger alguém”, ou seja, serem sujeito ativo do crime, caso, que na década de 40, seria totalmente impensável, como expõe Nelson Hungria: “O valor social do homem é muito menos prejudicado pela violência carnal do que a mulher, de modo que, em princípio, não se justifica, para o tratamento penal a equiparação dos dois casos. Quando tal violência contra a mulher resulta na cópula vagínica, e ainda que não se trate de
virgo intacta, pode acarretar o engravidamento, conseqüência tão grave, no caso, que a lei autoriza a prática do aborto”
.
Atualmente o estupro passa a ser considerado crime comum quanto aos sujeitos, não exigindo mais qualidade específica dos sujeitos envolvidos. É por óbvio que raro será ter uma mulher como sujeito ativo de um crime de estupro, porém não é impossível, como já ocorreu em uma caso na Rússia
.
2. Consumação e tentativa: outra alteração bastante relevante se dá quanto à consumação e tentativa do delito em questão. Anteriormente, a tentativa do estupro, poderia se subsumir, a depender da situação fática, ao crime de atentado violento ao pudor. Hoje não mais, a tentativa ocorrerá quando o indivíduo, por circunstâncias alheias à sua vontade, não conseguir praticar a conjunção carnal ou outro ato libidinoso.
3. Dolo específico: quanto ao dolo específico, consistente na vontade de satisfação da lascívia, embora parte doutrina entenda ser elemento subjetivo do tipo penal, não há que se cogitar tal especial fim de agir. Ora, um agente poderá estuprar para ter sua lascívia satisfeita, da mesma maneira poderá realizar a conduta típica por vingança, sadismo e até mesmo para obter uma confissão, sendo que, no último caso, vislumbrar-se-ia o concurso entre os crimes de tortura e estupro.
4. Sucessão de leis penais: a união de ambos os delitos trouxe à tona a aplicação do instituto da continuidade normativa típica., já que, embora o nomen iuris não seja mais adotado, a antiga conduta delitiva de atentado violento ao pudor está englobado pelo delito de estupro.
Taipa de Carvalho ensina que há vários critérios para aferir, na sucessão de leis, se houve ou não descriminalização a exigir aplicação da nova lei benéfica: “(...) continuidade normativo-típica, que tem como ponto de referência o tipo legal, e permite duas conclusões pacíficas e uma divergente: I – permanece a punibilidade do fato sempre que a lei nova se traduz em um alargamento da punibilidade através da supressão de elementos especializadores constantes da lei antiga; II – se há alterações do tipo legal que consistem em permuta de elementos da factualidade típica, não há real sucessão de leis penais, com reconhecimento da descriminalização ou desqualificação; III – se há redução da punibilidade por adição de novos elementos, há divergência entre os que negam a despenalização e os que apregoam, sendo que para Taipa de Carvalho há despenalização se os novos elementos são especializadores, e não há se são especificadores”
.
Sendo assim, no que tange à sucessão de leis penais, não que se falar em abolitio criminis com relação ao crime de atentado violento ao pudor, houve apenas uma mudança de lugar do tipo penal de atentado violento ao pudor, caracterizando a continuidade normativa típica.
Interessante que com relação a mulher que constrange o homem à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça, houve novatio legis in pejus, já que, anteriormente a vigência da lei 12.015 caracterizava-se tal conduta como constrangimento ilegal, agora, caracteriza-se por estupro.
5. Concurso de crimes: ocorre que, conforme a nova redação do art. 213 visualiza-se uma lei penal mais benéfica para os agentes criminosos que praticaram, no mesmo contexto fático e contra a mesma vítima, conjunção carnal e ato libidinoso diverso da conjunção carnal.
Anteriormente à lei 12.015 pacífica era a jurisprudência de atribuir o concurso material entre os crimes de estupro e atentado violento ao pudor quando ocorridos no mesmo contexto fático, bem como impossível de se atribuir a continuidade delitiva entre esses dois tipos penais, já que não eram crimes da mesma espécie. Nesse sentido decidiu o STF, pouco antes da reforma, que “não há que se falar em continuidade delitiva dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor”
.
Rogério Greco entende que “hoje, após a referida modificação, nessa hipótese, a lei veio beneficiar o agente, razão pela qual se, durante a prática violenta do ato sexual, o agente, além da penetração vaginal, vier a também, fazer sexo anal com a vítima, os fatos deverão ser entendidos como mesma figura típica, devendo ser entendida a infração penal como de ação múltipla, aplicando-se somente a pena cominada no art. 213 do CP, por uma única vez, afastando, dessa forma, o concurso de crimes”
.
Após diversas discussões acerca da possibilidade de concurso material de crimes (Vicente Greco) ou apenas a existência de crime único (NUCCI e ROGÉRIO GRECO) ainda não se chegou a um entendimento pacífico.
O STJ ainda diverge acerca do que anteriormente era tratado como concurso material de crimes. A nova lei, para alguns, é tratada como sendo um tipo penal misto alternativo - sendo que, a realização de várias condutas dentro de um mesmo contexto fático caracteriza-se crime único
, possibilitando, inclusive a continuidade delitiva entre o cometimento de vários crimes, desde que respeitados os requisitos; para outros como sendo um tipo penal misto cumulativo
, ou seja, que as duas condutas se diferem, não havendo conseqüências diferentes quanto ao concurso material anteriormente entendido, somente havendo a possibilidade de haver a continuidade delitiva, desde que a conduta realizada seja a mesma, ou seja, conjunção carnal em continuidade delitiva, ou ato libidinoso diverso da conjunção carnal em continuidade delitiva.
Discussões Jurisprudenciais deixadas de lado, entendemos que o art. 213 da lei 12.015 abarca um tipo penal misto alternativo. Veja que, nos tipos mistos cumulativos as condutas são separadas por “;” ou “e”, cujo exemplo é o delito do art. 244 do CP (abandono material).
“No recém criado art. 213, por outro lado, existe uma oração alternativa, pois as condutas de constranger alguém a ‘ter conjunção carnal’ e a ‘praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso’ estão separadas pela expressão ‘ou’”
. Assim sendo, é nítido que o art. 213 do CP é um tipo penal misto alternativo, caracterizando crime único a realização de várias condutas dentro de um mesmo contexto fático.
6. Formas qualificadas: previstas nos §§ 1° e 2° do art. 213 do CP estabelecem que “se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 anos ou maior de 14 anos” e “se da conduta resulta morte”.
Percebe-se que a nova redação do dispositivo pôs fim à discussão anteriormente existente com a redação anterior do preceito primário que continha a expressão “violência”, sendo entendido que a lesão corporal grave ou a morte somente poderiam ser decorrentes da “violência”, e não da grave ameaça. A nova redação estabelece que tais qualificadoras incidem com relação à conduta, não dando margens à discussões.
Cabível mencionar que as qualificadoras “lesão grave” e “morte” são preterdolosas, sendo que, caso o agente, após praticar o delito em questão mate, intencionalmente a vítima, haverá concurso material dos crimes de estupro (art. 213) e homicídio qualificado (art. 121, § 2°).
Nota-se que o tratamento dado pelo legislador é diverso daquele dado ao crime do art. 157, § 3° com resultado lesão grave ou morte (latrocínio), bem como ao crime do art. 159, § 3° (extorsão mediante seqüestro seguida de lesão grave ou morte) que incide a qualificadora com resultado lesão grave ou morte dolosa ou culposa.
Quanto à idade da vítima necessário trazer à discussão problematizações trazidas com a presente redação. Falava-se em uma lacuna legislativa caso a vítima tivesse, na data do crime, exatamente 14 anos, ou seja, caso o crime fosse cometido na data de seu décimo quarto aniversário, já que o art. 217-A (estupro de vulnerável) define como vulnerável a vítima com menos de 14 anos.
Acreditamos que tal lacuna é inexistente, tendo em vista a disposição do art. 2° do ECA acerca da definição da idade, que se dá com relação à idade futura, e não com relação à idade presente. Sendo assim, a vítima, na data de seu décimo quarto aniversário contará com 15 anos de idade incompletos, e não exatamente 14 anos.
A contrário senso, para Gustavo Octaviano Diniz Junqueira “na hipótese, é possível defender que não se aplica a presente qualificadora por falta de previsão legal, mas entendemos que, apesar da pouca técnica demonstrada, a partir dos primeiros instantes do dia em que completa 14 anos a vítima passa a ser ‘maior de 14 anos’, permitindo assim coerência ao sistema”
.
Necessário apontar que o conhecimento da idade da vítima é imprescindível para a incidência da presente qualificadora, já que o sujeito não poderia responder além de seu dolo, sob pena de um direito penal de responsabilização objetiva.
7. Lei dos crimes hediondos: a novel legislação sana a dúvida anteriormente existente quanto à hediondez dos crimes de estupro e de atentado violento ao pudor em suas formas simples.
Com a nova redação da lei 8072/90, o art. 1°, V colocou tanto o estupro simples, quanto suas formas qualificadas como sendo crime hediondo, não abrindo margem para discussões.
8. Ação Penal: embora o tema esteja tratado no art. 225 e em seu parágrafo único interessante destacar algumas posições quanto ao crime do art. 213, § 2° do CP, ou seja, quando há o resultado morte.
Estabelece o art. 225 “caput” do CP:
“Art. 225 - Nos crimes definidos nos capítulos I e II deste título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação”.
Sendo assim, agora é regra que a ação penal nos delitos contra a “liberdade sexual” será pública condicionada à representação, e não mais privada. É interessante ressaltar que a ação penal é uma norma processual penal heterotópica, ou seja, é uma norma processual com efeitos matérias, e, sendo assim, excetua-se ao princípio processual penal do “tempus regit actum”.
Questão interessante se dá com relação aos casos em que haja morte da vítima em decorrência do estupro, sem que a vítima possua familiares para que, de acordo com o art. 24, § 1° do CPP, ofereça a representação.
O PGR ingressou com a ADI 4.301 junto ao STF solicitando, inclusive liminarmente, a inconstitucionalidade do art. 225 do CP para admitir que a ação penal, no caso de estupro com resultado morte, fosse pública incondicionada.
Na ADI são expostos três fundamentos: “1°) ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana; 2°) ofensa ao princípio da proteção deficiente; 3°) possível extinção da punibilidade em massa nos processos em andamento, já que passariam a exigir manifestação da vítima (sob pena de decadência)”
.
Em contrapartida, sustenta Luiz Flávio Gomes que é impossível aplicar o art. 101 do CP (ação penal em crimes complexos) por duas razões: 1 - a norma do art. 225 é especial (frente ao art. 101 que é geral); 2 – a norma do art. 225 é posterior (o que afasta a regra anterior).
Significa que, caso seja adotada a orientação do professor citado acima, nos casos em que a vítima, morta, não tivesse quem pudesse representá-la, o autor do fato não seria punido.
Data vênia, tal entendimento encontra-se equivocado. Necessário frisar que a súmula 608 do STF não foi revogada, ainda que diante da alteração legislativa, sendo a maneira para sanar tal defeito no dispositivo legal do art. 225 do CP.
A súmula 608 do STF traz a seguinte redação: “no crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação é pública incondicionada”. Desta forma, a presente súmula ainda pode ser aplicada aos crimes de estupro que haja violência real, causando a morte do ofendido ou lesão grave, podendo o MP oferecer a ação penal independentemente de representação da vítima.
Quanto ao disposto no art. 225, parágrafo único do CP, inteligência do legislador em determinar que os crimes definidos nos Capítulos I e II quando a vítima for menor de 18 anos e maior de 14 anos, bem como vulnerável, seja pública incondicionada.
HC 105533/PR – Min. Laurita Vaz – Quinta Turma – 07/02/11. Antes da edição da Lei n.º 12.015/2009 havia dois delitos autônomos, com penalidades igualmente independentes: o estupro e o atentado violento ao pudor. Com a vigência da referida lei, o art. 213 do Código Penal passa a ser um tipo misto cumulativo, uma vez que as condutas previstas no tipo têm, cada uma, "autonomia funcional e respondem a distintas espécies valorativas, com o que o delito se faz plural" (DE ASÚA, Jimenez, Tratado de Derecho Penal, Tomo III, Buenos Aires, Editorial Losada, 1963, p. 916).
2. Tendo as condutas um modo de execução distinto, com aumento qualitativo do tipo de injusto, não há a possibilidade de se reconhecer a continuidade delitiva entre a cópula vaginal e o ato libidinoso diverso da conjunção carnal, mesmo depois de o Legislador tê-las inserido num só artigo de lei.
3. Se, durante o tempo em que a vítima esteve sob o poder do agente, ocorreu mais de uma conjunção carnal caracteriza-se o crime continuado entre as condutas, porquanto estar-se-á diante de uma repetição quantitativa do mesmo injusto. Todavia, se, além da conjunção carnal, houve outro ato libidinoso, como o coito anal, por exemplo, cada um desses caracteriza crime diferente e a pena será cumulativamente aplicada à reprimenda relativa à conjunção carnal.
Ou seja, a nova redação do art. 213 do Código Penal absorve o ato libidinoso em progressão ao estupro – classificável como “praeludia coiti” – e não o ato libidinoso autônomo.