terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Redução da Maioridade Penal

Estabelece o art. 228 da Constituição Federal que “são penalmente inimputáveis os menores de 18 anos, sujeitos às normas da legislação especial”. No mesmo sentido versa o art, 27 do Código Penal que traz a sua não aplicação àqueles, menores de 18 anos, que praticarem condutas tuteladas por este diploma legal.
A grande polêmica do tema não se dá com relação à questão de ser ou não reduzida a menoridade penal do art. 228 da CF, mas sim em tal regra ser ou não uma cláusula pétrea.
Estabelece o artigo 60, § 4° da CF limitações materiais aos objetos de emendas constitucionais. Ocorre que o art. 60, § 4° da CF não traz um rol exaustivo de limitações às emendas constitucionais, havendo também clausulas pétreas implícitas no bojo da Constituição Federal.
Neste aspecto, interessante trazer ao debate o entendimento de José Afonso da Silva sobre a existência de clausulas pétreas implícitas no bojo da Constituição Federal brasileira:
“(...) é claro que o texto não proíbe apenas emendas que expressamente declarem ‘fica abolida a federação ou a forma federativa de Estado’, ‘fica abolido o voto direito’ (...). A vedação atinge a pretensão de modificar qualquer elemento conceitual da Federação, ou de comunicação, ou outro direito e garantia individual (...)” [1].

Dentro de tal entendimento há duas posições acerca da admissibilidade do art. 228 da CF como sendo uma clausula pétrea implícita ou não.
Neste aspecto, corroboro com o entendimento trazido por Guilherme de Souza Nucci, negando o caráter de cláusula pétrea do art. 228 da CF.
           Ora, levando em consideração o ensinamento trazido por José Afonso da Silva, a modificação do art. 228 da CF não implica em violação indireta a nenhuma das clausulas pétreas apontadas pelo art. 60, § 4° da CF. Neste sentido, Nucci entende que
“(...) temos dois pontos a destacar. Em primeiro lugar não se encontra o dispositivo no Título II (Dos direitos e Garantias Fundamentais), Capítulo I (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos) da Constituição Federal. Insere-se, como vontade do constituinte, no Título VIII (Da Ordem Social), Capítulo VII (Da Família, Da criança, Do Adolescente e do Idoso). Formalmente, pois, não é direito ou garantia fundamental. Em segundo lugar, poder-se-ia dizer que se trata de direito fundamental deslocado de seu contexto natural (art. 5° da CF). Para que isso fosse possível, segundo nos parece, deveria ser considerado um direito ou garantia humana fundamental de conteúdo material, vale dizer, universalmente aceito como tal. (...)” [2].

Ademais, pode-se notar que a idade de responsabilização penal varia de país para país, bem como estabelece o art. 1° da Convenção sobre os Direitos da Criança que “Para efeitos da presente Convenção considera-se como criança todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes”.
No momento não se deve adentrar à discussão acerca da divisão feita pela legislação brasileira entre criança e adolescente, mas sim a questão de que a própria Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança menciona que a maioridade pode ser alcançada antes dos 18 anos de idade, caso o país queira.
É cabível mencionar que a Convenção em questão é um Tratado Internacional que versa sobre direitos humanos, e como ingressou no ordenamento jurídico anteriormente à Emenda Constitucional 45/05 possui caráter supra legal.
Neste sentido, embora não tenha o condão de alterar o art. 228 da CF, é possível interpretar que há norma de caráter supra legal no ordenamento jurídico brasileiro que estabelece a possibilidade de redução da maioridade prevista no art. 228 da CF, o que corrobora para o entendimento de que o presente artigo não se refere à uma clausula pétrea implícita.
Ora, se “a imputabilidade é a capacidade do ser humano de discernir entre o certo e o errado e, assim fazendo, optar, livremente, pelo caminho lícito ou do ilícito” [3], qual a diferença entre um adolescente que completará 18 anos no dia seguinte a prática de uma infração penal para um adulto que acabara de adquirir a maioridade?
Neste aspecto, inúmeras são as possibilidades de redução da maioridade penal. Não é possível que seja presumido o desenvolvimento mental incompleto de um ser humano diante da evolução das trocas de informações presentes em um mundo globalizado.
A legislação infraconstitucional adota, como regra, o critério biopsicológico para aferir a culpabilidade, ou seja, nas palavras Gustavo O. Diniz Junqueira
“para que haja inimputabilidade é preciso causa e conseqüência, ou seja, além de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado (causa), é preciso que o sujeito não tenha ao tempo da ação ou da omissão condições de compreender o caráter ilícito do que faz e portar-se de acordo com tal entendimento (conseqüência)” [4].

Neste sentido, é possível, inclusive, diminuir a maioridade penal, vinculando aos menores de 18 anos (imputáveis penalmente) a necessidade de um exame de maturidade, já que, há maiores de 18 anos imaturos e menores de 18 anos maduros o suficientes para ingressar em organizações criminosas.
Outro aspecto interessante se relaciona à política Criminal. Conforme dados consolidados do Departamento Penitenciário Nacional [5], em Dezembro de 2009 o país possuía 294.684 (duzentas e noventa e quatro mil seiscentos e oitenta e quatro) vagas no sistema penitenciário, sendo a população carcerária de 473.626 (quatrocentos e setenta e três mil seiscentos e vinte e seis) presos, ou seja, o sistema penitenciário comportava, em 2009, 60,72 % a mais de presos do que a quantidade de vagas.
            Sendo assim, como política criminal, tal redução da maioridade acabaria aumento ainda mais o índice de encarcerados no sistema prisional, o que não beneficiaria as estatísticas do Governo.


[1] SILVA. José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. São Paulo. Ed. Malheiros. 2006. Pág. 67.
[2] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais comentadas. São Paulo. Editora RT, 2009. Pág. 233/234.
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais comentadas. São Paulo. Editora RT, 2009. Pág. 234.
[4] JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Direito Penal. Coleção Elementos do Direito. 9° edição. RT. 2009. Pág. 99.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Direito ao silêncio e não autoincriminação (art. 5°, LXIII)

Tem sua origem no Direito Penal antigo e não só permite que o acusado permaneça em silêncio durante toda a investigação e em juízo, como impede que seja coagido a produzir ou, até mesmo a contribuir com a formação de prova contra o seu interesse. Tem sua máxima na expressão latina “nemo tenetur se detegere”.
A partir deste princípio constituciona,l que deve ser assegurado em todas as fases da persecução penal, surgiram algumas questões contraditórias, tais como as questões ocorridas por força da aplicação do art. 186 do CPP (interrogatório) e do art. 7° do mesmo diploma legal (reconstituição do crime).
Estabelece o art. 186 do CPP: “Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas”.
O interrogatório é autêntico meio de defesa, pautando-se na questão da auto defesa do acusado, permitindo que este influa direta e pessoalmente no convencimento do Juiz, sendo, porém, renunciável pelo acusado.
Neste caso entende-se que o interrogatório é dividido em duas partes, o interrogatório de qualificação, o qual versa sobre a pessoa do acusado; e interrogatório de mérito, que versa sobre o fato constitutivo da acusação.
Importante mencionar que o direito ao silêncio, bem como a possibilidade do acusado mentir, decorrem do direito de defesa, não alcançando o interrogatório de qualificação, resultando, então, na não aplicação do art. 5°, LXIII ao interrogatório de qualificação, sendo tal princípio relativizado. Neste ponto, caso o acusado silencie sobre sua identificação restará a contravenção penal do art. 68 da LCP (recusa de dados sobre sua própria identidade ou qualificação) ou, caso o acusado minta sobre sua identidade para obter vantagem ou para causar dano a outrem restará configurado o crime de falsa identidade, art. 307 do CP. (Há recente acórdão do STJ suspendendo, nos Tribunais, todas as causas condizentes com a aplicação do art. 307 – a tendência é considerar que não configura crime).
Com relação à reconstituição do crime prevista pelo art. 7° do CPP é esmagadora a jurisprudência no sentido de que o indiciado não tem o dever de comparecer à reprodução simulada, tendo em vista o princípio da não produção de provas contra si mesmo, “nemo tenetur se detegere”, sob pena, inclusive, de caracterizar injusto constrangimento.
Nesse sentido o acórdão proferido pelo TJRS:
“HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO. REPRODUÇÃO SIMULADA DOS FATOS. ART. 7º, CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. DILIGÊNCIA REQUISITADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. OBRIGATORIEDADE DA PARTICIPAÇÃO DO ACUSADO. Não se pode compelir o indiciado a participar da reconstituição da prática criminosa, sob pena de se caracterizar injusto constrangimento. Ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo. REALIZAÇÃO DA DILIGÊNCIA. POSSIBILIDADE. Não estando caracterizadas situações de contrariedade à moralidade e à ordem pública, o que se veda, é de ser realizada a reprodução simulada dos fatos, à luz do art. 7º, do Código de Processo Penal. Trata-se de importante fonte de prova e de convicção sobre como ocorreu o delito. (Habeas Corpus Nº 70013558374, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Danúbio Edon Franco, Julgado em 15/12/2005)” [1].

Ocorre que a jurisprudência fala em participar, não em comparecer. Vamos exemplificar: se este meio de prova for produzido em sede de processo penal, ou seja, sob a égide do princípio acusatório, notadamente que haverá contraditório e ampla defesa, devendo o réu, ao menos presenciar a reconstituição do crime, sob pena de nulidade do ato.
Ora, sob um ponto de vista pessoal e minoritário tem-se admitido a condução coercitiva ao local da reprodução simulada dos fatos, sob pena de incorrer no crime de desobediência. Comparecendo, não será o indiciado obrigado a participar tendo em vista o princípio ora aludido.

Princípio Acusatório

           Pode-se dizer que é um dos pilares de um Estado Democrático de Direito, o qual garante a efetiva aplicação de um contraditório e uma ampla defesa justa. Nesse processo, além de existir um Juiz imparcial, há também um sistema no qual as partes possuem funções de defesa e acusação bem delineadas. O único interesse do Juiz é a solução do conflito de acordo com os princípios constitucionais e leis processuais.
Há quem diga que o sistema adotado no Brasil é misto. Errada encontra-se esta afirmação. O sistema adotado pelo Brasil é eminentemente acusatório, já que definição de um sistema processual há de limitar-se ao exame do processo, e, sendo o inquérito policial um procedimento administrativo, misto não será o sistema processual brasileiro.
Eugênio Pacelli critica algumas atuações jurisdicionais no curso do Processo, dando a entender que a igualdade de partes ainda não é totalmente aplicada:
“Com efeito, a igualdade das partes somente será alcançada quando não se permitir mais ao Juiz uma atuação substitutiva da função ministerial, não só no que respeita ao oferecimento da acusação, mas também no que se refere ao ônus processual de demonstrar a veracidade das imputações feitas ao acusado. A iniciativa probatória do juiz deve limitar-se, então, ao esclarecimento das questões ou pontos duvidosos sobre o material já trazido pelas partes (...)” [1].

Em contrapartida, o artigo 156, I do CPP, ao permitir que o Juiz, de ofício, ordene, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção de provas consideradas urgentes e relevantes, viola o princípio em questão. Não cabe ao Juiz tutelar e direcionar a investigação. Um Juiz que atua desta maneira na fase investigatória, além de violar o sistema acusatório, acaba por se tornar parcial ao proferir sua decisão.
Por fim, nota-se que o princípio acusatório não se encontra bem delineado pela legislação infraconstitucional, bem como por parcela da doutrina.


[1] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 13ª edição. Lúmen Júris. Rio de Janeiro. 2010. Pág.11.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Breves considerações acerca do crime de estupro de vulnerável

  • ART. 217-A – ESTUPRO DE VULNERÁVEL

A lei 12.015/09 trouxe uma nova modalidade de estupro como tipo penal autônomo, não mais sendo utilizadas as figuras do art. 224 do CP que traziam a violência presumida às vítimas menores de 14 anos, alienação ou debilidade mental ou caso a vítima não pudesse oferecer resistência.
Destarte, não houve alteração quanto às questões anteriormente definidas como “presunção de violência”, mas apenas alteração quanto ao termo utilizado, que agora, tais vítimas se enquadram na vulnerabilidade, como sendo aquelas que não possuem condições de consentir de forma válida com a prática sexual, seja ela a conjunção carnal, seja outro ato libidinoso.
Estabelece o art. 217 – A do CP:
“Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze)
anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
§ 2º (VETADO)
§ 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
§ 4º Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos”.

            Quanto à vulnerabilidade “a antiga discussão acerca da presunção de violência, se absoluta ou relativa, travada especialmente no campo da idade, não foi de toda afastada. A interpretação literal do recém editado art. 217-A do CP tem levado a conclusões precipitadas no sentido de que a antiga discussão sobre a natureza da presunção, se absoluta ou relativa, desapareceu, dando lugar presunção iuris et de iuri (absoluta) de vulnerabilidade das pessoas ali elencadas” [1].
“A fim de se desfazer tal equívoco, e, em respeito aos princípios constitucionais da intervenção mínima do direito penal, da ofensividade, do contraditório e da presunção de inocência, é que a vulnerabilidade, merecedora de tutela penal, deve ser compreendida de forma restrita e causuisticamente, tendo como essência a fragilidade e a incapacidade física ou mental da vítima, na situação concreta, para consentir com a prática do ato sexual” [2].
Ocorre que, infere-se da redação legal, que na prática de ato sexual com a vítima em condição de vulnerabilidade há uma presunção de lesão ao bem jurídico “liberdade sexual”, justamente pela condição especial da vítima. Desta forma, a prática de conjunção carnal ou atos libidinosos diversos com tais vítimas é, necessariamente, lesiva à dignidade sexual.

1. Sujeitos da infração: é crime comum quanto ao sujeito ativo, já que pode ser praticado por qualquer pessoa. Porém, é crime próprio quanto ao sujeito passivo, já que exige especial condição da vítima, ou seja, menor de 14 anos, portadora de enfermidade ou deficiência mental ou incapacidade de discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não tenha condições de oferecer resistência.
Necessário que o agente tenha ciência de tais especificidades com relação à vítima, já que, diante do Princípio da Culpabilidade, o agente só poderá ser punido na medida de seu dolo ou culpa. Portanto, caso o autor não tenha ciência de quaisquer das condições atribuídas à vítima ocorrerá erro de tipo [3], afastando-se o dolo, e conseqüentemente, não mais havendo punição, já que não há previsão culposa do tipo penal de estupro.
Quanto à idade da vítima, o STF já reconheceu que, embora entenda que o fato da vítima ser menor de 14 anos seja absoluto, poderá haver incidência do erro de tipo: “1. Em se tratando de delito contra os costumes, a palavra da ofendida ganha especial relevo. Aliada aos exames periciais, ilide o argumento da negativa de autoria. 2. O erro quanto à idade da ofendida é o que a doutrina chama de erro de tipo, ou seja o erro quanto a um dos elementos integrantes do erro do tipo. A jurisprudência do tribunal reconhece a atipicidade  do fato somente quando se demonstra que a ofendida aparenta ter idade superior a 14 (quatorze) anos. Precedentes (...)” [4].
Indiscutível que não é pacífico ainda a questão, já mencionada, acerca da vulnerabilidade da vítima ser relativa ou absoluta, mas pedimos escusas para citar o brilhante voto proferido pelo Desembargado Guilherme de Souza Nucci, na Apelação criminal n° 990.10.333018-8 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o qual entende ser relativa tal presunção aos adolescentes:
“Inicialmente, vale um registro. A alteração introduzida pela lei 12.015/2009 não eliminou a controvérsia doutrinária e jurisprudencial quanto a ser relativa ou absoluta a presunção de violência prescrita no antigo art. 224 do Código Penal. O debate, agora, cinge-se à relativização, ou não, da vulnerabilidade da vítima.
Conforme tenho defendido, não caminhou bem o legislador ao deixar de homogeneizar a definição de criança e adolescente, ora protegendo o menor de 12 anos (Estatuto da Criança e do Adolescente), ora resguardando o menor de 14 anos (Código Penal).
Entendo, portanto, ser absoluta a presunção de vulnerabilidade tão somente em relação às crianças, ou seja, aos menores de 12 anos. Sendo, ao contrário, possível discutir-se a relativização da vulnerabilidade em se tratando de adolescentes (maiores de 12 anos). (...).
In casu, a vítima contava a idade de 13 anos, razão pela qual é possível analisar-se a relativização da vulnerabilidade.
Há nos autos informação de já ser a vítima iniciada na vida sexual, inclusive prostituindo-se por dinheiro em diversas outras ocasiões.
Conforme restou apurado, na data dos fatos o apelante chamou a vítima para conversar às margens da linha férrea, ocasião em que a vítima se fez acompanhar do adolescente Luiz Antônio Galdino, maior de quatorze anos, oportunidade em que ambos praticaram sexo oral no apelante.
A vítima, Davi, narra ser homossexual, tendo mantido sua primeira relação sexual aos 10 anos de idade. Relata ter mantido relações homossexuais com as pessoas de Jacir, Olívio, José Paulo, José Perin, com o próprio apelante, dentre outros, por vezes recebendo dinheiro pela prática sexual (fls. 493 e ss.).
Em solo policial narrou: "Esclareço que faço isto porque gosto, não procuro tirar proveito disto" (fls. 13).
Assim, analisando o caso concreto, entendo que a suposta vítima não se encontrava em situação de vulnerabilidade, tendo plena ciência do quanto se passava, não se podendo falar em presunção de violência.
Portanto, a absolvição é a melhor medida.
Ante o exposto, pelo meu voto, dou provimento ao apelo defensivo para absolver Luiz Antônio Vieira de Brito das imputações que lhe são feitas”.

Com relação à ausência de discernimento da vítima em virtude de doença mental ou enfermidade, o entendimento é o mesmo que o mencionado com relação à idade da vítima. O conhecimento destas condições pelo sujeito ativo da infração é imprescindível, bem como, tal hipótese, deve ser analisada de acordo com as circunstâncias, ponderando o grau de incapacidade da vítima.
Por fim, e para não nos estendermos mais sobre o assunto, há a condição de vulnerabilidade nos casos em que a vítima não possa oferecer resistência.
Necessário diferenciar a vítima que não possa oferecer resistência daquela que possui capacidade para tanto, porém, com capacidade reduzida, como nos casos de vítima não completamente embriagada.
Importante, em casos de embriaguez, destacar se a vítima encontra-se completamente embriagada ou não. Se a embriaguez for completa, a conduta é passível de ser caracterizada como estupro, devendo ser observadas as circunstâncias do fato, bem como a questão da “actio libera in causae”, já que, por muitos vezes, a embriaguez é pressuposto para a prática de relações sexuais, tal como, por exemplo, para tomar coragem para a realização do ato.
Interessante a conduta daquele que embriaga a vítima para praticar conjunção carnal. Entendemos que, neste caso, a vítima, ao tempo da ingestão da bebida alcoólica, era totalmente capaz de entender a situação fática (“actio libera in causae”), motivo pelo qual, a depender das circunstâncias poderá configurar fato atípico, bem como o crime do art. 215 do CP, já tratado aqui, violação sexual mediante fraude.

2. Formas qualificadas: não há muito assunto a ser abordado neste ponto em específico. O Necessário é reforçar a questão de que tais qualificadoras trazidas (lesão grave ou morte) são preterdolosas.
Sendo assim, ao agente que mantém conjunção carnal com vulnerável e, após o ato, mata a vítima para ocultar o crime antecedente, responderá pelos crimes de estupro de vulnerável em concurso material com o crime de homicídio qualificado.

3. Ação Penal: a antiga redação do art. 225 do CP estabelecia que a ação penal nos casos de estupro com violência presumida seria privada, salvo nos casos em que o “crime era cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador”, sendo ação pública incondicionada.
Com a nova redação do art. 225 do CP a ação penal nos crimes cometidos contra vulnerável se tornou pública incondicionada, bem como, nos casos em que a vítima for menor de 18 anos.


[1] NUCCI, Guilherme de Souza; ALVES, Jamil Chaim; ZIMMARO, Rafael Barone; BURRI, Juliana; CUNHA, Patrícia Bastos Monteiro; SILVA, Raphael Zanon da. O Crime de estupro sobre o prisma da lei 12.015/09 (Artigos 213 E 217-A do Código Penal). RT 902. Pág. 411.
[2] Idem.
[3] Apelação nº 0002776-38.2009.8.26.0040. TJSP. Desembargador Paulo Rossi. APELAÇÃO CRIMINAL ESTUPRO VIOLÊNCIA PRESUMIDA VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS DE IDADE RECURSO MINISTERIAL – PRETENDIDA CONDENAÇÃO- IMPOSSIBILIDADE - ERRO DE TIPO - PLAUSIBILIDADE - MENINA COM CORPO SEXUALMENTE DESENVOLVIDO, QUE CONSENTIU COM O ATO LIBIDINOSO -APARENTES MOTIVOS PARA QUE O AGENTE ACREDITASSE TER A ADOLESCENTE MAIS DE 14 (QUATORZE) ANOS - ERRO QUANDO A ELEMENTO CONSTITUTIVO DO TIPO - DÚVIDA - BENEFÍCIO QUE DEVE SER RESOLVIDO EM FAVOR DO RÉU - MANUTENÇÃO DA ABSOLVIÇÃO NECESSIDADE.
[4] STF, RHC 79788/MG. 2° Ttuma. 02.05.2000. Relator – Min. Nelson Jobim.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

O Direito ao silêncio e não autoincriminação (art. 5°, LXIII)

Tem sua origem no Direito Penal antigo e não só permite que o acusado permaneça em silêncio durante toda a investigação e em juízo, como impede que seja coagido a produzir ou, até mesmo a contribuir com a formação de prova contra o seu interesse. Tem sua máxima na expressão latina “nemo tenetur se detegere”.
A partir deste princípio constituciona,l que deve ser assegurado em todas as fases da persecução penal, surgiram algumas questões contraditórias, tais como as questões ocorridas por força da aplicação do art. 186 do CPP (interrogatório) e do art. 7° do mesmo diploma legal (reconstituição do crime).
Estabelece o art. 186 do CPP: “Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas”.
O interrogatório é autêntico meio de defesa, pautando-se na questão da auto defesa do acusado, permitindo que este influa direta e pessoalmente no convencimento do Juiz, sendo, porém, renunciável pelo acusado.
Neste caso entende-se que o interrogatório é dividido em duas partes, o interrogatório de qualificação, o qual versa sobre a pessoa do acusado; e interrogatório de mérito, que versa sobre o fato constitutivo da acusação.
Importante mencionar que o direito ao silêncio, bem como a possibilidade do acusado mentir, decorrem do direito de defesa, não alcançando o interrogatório de qualificação, resultando, então, na não aplicação do art. 5°, LXIII ao interrogatório de qualificação, sendo tal princípio relativizado. Neste ponto, caso o acusado silencie sobre sua identificação restará a contravenção penal do art. 68 da LCP (recusa de dados sobre sua própria identidade ou qualificação) ou, caso o acusado minta sobre sua identidade para obter vantagem ou para causar dano a outrem restará configurado o crime de falsa identidade, art. 307 do CP. (Há recente acórdão do STJ suspendendo, nos Tribunais, todas as causas condizentes com a aplicação do art. 307 – a tendência é considerar que não configura crime).
Com relação à reconstituição do crime prevista pelo art. 7° do CPP é esmagadora a jurisprudência no sentido de que o indiciado não tem o dever de participar da reprodução simulada, tendo em vista o princípio da não produção de provas contra si mesmo, “nemo tenetur se detegere”, sob pena, inclusive, de caracterizar injusto constrangimento.
Nesse sentido o acórdão proferido pelo TJRS:
“HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO. REPRODUÇÃO SIMULADA DOS FATOS. ART. 7º, CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. DILIGÊNCIA REQUISITADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. OBRIGATORIEDADE DA PARTICIPAÇÃO DO ACUSADO. Não se pode compelir o indiciado a participar da reconstituição da prática criminosa, sob pena de se caracterizar injusto constrangimento. Ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo. REALIZAÇÃO DA DILIGÊNCIA. POSSIBILIDADE. Não estando caracterizadas situações de contrariedade à moralidade e à ordem pública, o que se veda, é de ser realizada a reprodução simulada dos fatos, à luz do art. 7º, do Código de Processo Penal. Trata-se de importante fonte de prova e de convicção sobre como ocorreu o delito. (Habeas Corpus Nº 70013558374, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Danúbio Edon Franco, Julgado em 15/12/2005)” [1].

Ocorre que a jurisprudência fala em participar, não em comparecer. Vamos exemplificar: se este meio de prova for produzido em sede de processo penal, ou seja, sob a égide do princípio acusatório, notadamente que haverá contraditório e ampla defesa, devendo o réu, ao menos presenciar a reconstituição do crime, sob pena de nulidade do ato.
Ora, sob um ponto de vista pessoal e minoritário tem-se admitido a condução coercitiva ao local da reprodução simulada dos fatos, sob pena do acusado incorrer no crime de desobediência. Comparecendo, não será o indiciado obrigado a participar tendo em vista o princípio ora aludido.



sábado, 3 de setembro de 2011

O crime de Estupro após a lei 12.015/09

            INTRODUÇÃO

Anteriormente denominado de “crimes contra os costumes”, o título VI da parte especial do Código Penal sofreu inúmeras modificações com o advento da lei 12.015/2009, inclusive alterando a denominação do título para “crimes contra a dignidade sexual”.
Guilherme de Souza Nucci trata que “referida alteração de nomenclatura indica, desde logo, que a preocupação do legislador não se limita ao sentimento de repulsa social a esse tipo de conduta, como acontecia nas décadas anteriores, mas sim à efetiva lesão ao bem jurídico em questão, ou seja, à dignidade sexual de quem é vítima deste tipo de infração” [1].
Desta forma, a própria denominação ao título acerca da “dignidade” é reflexo direto do art. 1°, III da CF que trata da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil, acabando de vez com a questão até então adotada pela terminologia “costumes”, extirpando do ordenamento jurídico questões relacionadas ao preconceito quanto ao gênero sexual e dando maior ênfase à pessoa como sujeito de direitos.
Para José Afonso da Silva “(...) o conceito dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-los para construir ‘teoria do núcleo da personalidade’ individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana” [2].
Sendo assim, é nítido que a novel legislação acerca dos “crimes contra a dignidade sexual”, não só trouxe à tona reformulações quanto ao tipos penais que serão apresentados no decorrer do desenvolvimento do tema, mas também quanto a alteração do bem jurídico protegido, que agora corresponde simetricamente à orientação constitucional.
Interessante que, do ponto de vista criminológico, a vítima não terá mais a proteção no tocantes aos “costumes sexuais” que a sociedade lhe impõe, mas sim à sua “dignidade sexual”, que pela denominação agora dada, nos parece de extrema relevância, onde o Estado, deverá protegê-los com maior eficiência, bem como apoiar as vítimas de tais delitos de maneira mais eficaz, evitando assim, eventual vitimização secundária (lentidão de um sistema criminal, bem como a exposição da vítima no decorrer do processo), bem como a vitimização terciária ( decorrente da omissão do Estado e da sociedade).


            ART. 213 – ESTUPRO

Sem dúvida foi a alteração mais importante trazida pela reforma. Com a lei 12.015/2009 não se fala mais na figura típica do atentado violento ao pudor (antiga redação do art. 214 do CP), mas sim em uma junção dos artigos 213 e 214 do CP em um só, tratando ambas as condutas como crime de estupro.

1. Sujeitos da Infração: anteriormente a edição da referida lei, distinguiam-se os sujeitos passivos e ativos dos crimes referidos, ou seja, antes de agosto de 2009 o delito de estupro era um crime bipróprio, ou seja, eram exigidas qualidades especiais, tanto o sujeito passivo (somente mulher), quanto do sujeito ativo (somente homem). A mulher poderia figurar como sujeito ativo do crime, excepcionalmente, no caso de autoria mediata ou quando em concurso (participação) com homem – art. 29 do CP.
No que tange ao revogado art. 214 do CP (atentado violento ao pudor) tal qualidade dos sujeitos já não era necessária.
Estabelece o art. 213 do CP:

Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos89.
§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§ 2º Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos”.

            Desta maneira, com a nova redação do art. 213 do CP, tanto o homem, quanto a mulher podem “constranger alguém”, ou seja, serem sujeito ativo do crime, caso, que na década de 40, seria totalmente impensável, como expõe Nelson Hungria: “O valor social do homem é muito menos prejudicado pela violência carnal do que a mulher, de modo que, em princípio, não se justifica, para o tratamento penal a equiparação dos dois casos. Quando tal violência contra a mulher resulta na cópula vagínica, e ainda que não se trate de virgo intacta, pode acarretar o engravidamento, conseqüência tão grave, no caso, que a lei autoriza a prática do aborto” [3].
            Atualmente o estupro passa a ser considerado crime comum quanto aos sujeitos, não exigindo mais qualidade específica dos sujeitos envolvidos. É por óbvio que raro será ter uma mulher como sujeito ativo de um crime de estupro, porém não é impossível, como já ocorreu em uma caso na Rússia [4].

            2. Consumação e tentativa: outra alteração bastante relevante se dá quanto à consumação e tentativa do delito em questão. Anteriormente, a tentativa do estupro, poderia se subsumir, a depender da situação fática, ao crime de atentado violento ao pudor. Hoje não mais, a tentativa ocorrerá quando o indivíduo, por circunstâncias alheias à sua vontade, não conseguir praticar a conjunção carnal ou outro ato libidinoso.

            3. Dolo específico: quanto ao dolo específico, consistente na vontade de satisfação da lascívia, embora parte doutrina entenda ser elemento subjetivo do tipo penal, não há que se cogitar tal especial fim de agir. Ora, um agente poderá estuprar para ter sua lascívia satisfeita, da mesma maneira poderá realizar a conduta típica por vingança, sadismo e até mesmo para obter uma confissão, sendo que, no último caso, vislumbrar-se-ia o concurso entre os crimes de tortura e estupro.

            4. Sucessão de leis penais: a união de ambos os delitos trouxe à tona a aplicação do instituto da continuidade normativa típica., já que, embora o nomen iuris não seja mais adotado, a antiga conduta delitiva de atentado violento ao pudor está englobado pelo delito de estupro.
Taipa de Carvalho ensina que há vários critérios para aferir, na sucessão de leis, se houve ou não descriminalização a exigir aplicação da nova lei benéfica: “(...) continuidade normativo-típica, que tem como ponto de referência o tipo legal, e permite duas conclusões pacíficas e uma divergente: I – permanece a punibilidade do fato sempre que a lei nova se traduz em um alargamento da punibilidade através da supressão de elementos especializadores constantes da lei antiga; II – se há alterações do tipo legal que consistem em permuta de elementos da factualidade típica, não há real sucessão de leis penais, com reconhecimento da descriminalização ou desqualificação; III – se há redução da punibilidade por adição de novos elementos, há divergência entre os que negam a despenalização e os que apregoam, sendo que para Taipa de Carvalho há despenalização se os novos elementos são especializadores, e não há se são especificadores” [5].
Sendo assim, no que tange à sucessão de leis penais, não que se falar em abolitio criminis com relação ao crime de atentado violento ao pudor, houve apenas uma mudança de lugar do tipo penal de atentado violento ao pudor, caracterizando a continuidade normativa típica.
Interessante que com relação a mulher que constrange o homem à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça, houve novatio legis in pejus, já que, anteriormente a vigência da lei 12.015 caracterizava-se tal conduta como constrangimento ilegal, agora, caracteriza-se por estupro.

5. Concurso de crimes: ocorre que, conforme a nova redação do art. 213 visualiza-se uma lei penal mais benéfica para os agentes criminosos que praticaram, no mesmo contexto fático e contra a mesma vítima, conjunção carnal e ato libidinoso diverso da conjunção carnal.
Anteriormente à lei 12.015 pacífica era a jurisprudência de atribuir o concurso material entre os crimes de estupro e atentado violento ao pudor quando ocorridos no mesmo contexto fático, bem como impossível de se atribuir a continuidade delitiva entre esses dois tipos penais, já que não eram crimes da mesma espécie. Nesse sentido decidiu o STF, pouco antes da reforma, que “não há que se falar em continuidade delitiva dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor” [6].
Rogério Greco entende que “hoje, após a referida modificação, nessa hipótese, a lei veio beneficiar o agente, razão pela qual se, durante a prática violenta do ato sexual, o agente, além da penetração vaginal, vier a também, fazer sexo anal com a vítima, os fatos deverão ser entendidos como mesma figura típica, devendo ser entendida a infração penal como de ação múltipla, aplicando-se somente a pena cominada no art. 213 do CP, por uma única vez, afastando, dessa forma, o concurso de crimes” [7].  
Após diversas discussões acerca da possibilidade de concurso material de crimes (Vicente Greco) ou apenas a existência de crime único (NUCCI e ROGÉRIO GRECO) ainda não se chegou a um entendimento pacífico.
O STJ ainda diverge acerca do que anteriormente era tratado como concurso material de crimes. A nova lei, para alguns, é tratada como sendo um tipo penal misto alternativo - sendo que, a realização de várias condutas dentro de um mesmo contexto fático caracteriza-se crime único [8], possibilitando, inclusive a continuidade delitiva entre o cometimento de vários crimes, desde que respeitados os requisitos; para outros como sendo um tipo penal misto cumulativo [9], ou seja, que as duas condutas se diferem, não havendo conseqüências diferentes quanto ao concurso material anteriormente entendido, somente havendo a possibilidade de haver a continuidade delitiva, desde que a conduta realizada seja a mesma, ou seja, conjunção carnal em continuidade delitiva, ou ato libidinoso diverso da conjunção carnal em continuidade delitiva.
Discussões Jurisprudenciais deixadas de lado, entendemos que o art. 213 da lei 12.015 abarca um tipo penal misto alternativo. Veja que, nos tipos mistos cumulativos as condutas são separadas por “;” ou “e”, cujo exemplo é o delito do art. 244 do CP (abandono material).
“No recém criado art. 213, por outro lado, existe uma oração alternativa, pois as condutas de constranger alguém a ‘ter conjunção carnal’ e a ‘praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso’ estão separadas pela expressão ‘ou’” [10]. Assim sendo, é nítido que o art. 213 do CP é um tipo penal misto alternativo, caracterizando crime único a realização de várias condutas dentro de um mesmo contexto fático.

6. Formas qualificadas: previstas nos §§ 1° e 2° do art. 213 do CP estabelecem que “se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 anos ou maior de 14 anos” e “se da conduta resulta morte”.
Percebe-se que a nova redação do dispositivo pôs fim à discussão anteriormente existente com a redação anterior do preceito primário que continha a expressão “violência”, sendo entendido que a lesão corporal grave ou a morte somente poderiam ser decorrentes da “violência”, e não da grave ameaça. A nova redação estabelece que tais qualificadoras incidem com relação à conduta, não dando margens à discussões.
Cabível mencionar que as qualificadoras “lesão grave” e “morte” são preterdolosas, sendo que, caso o agente, após praticar o delito em questão mate, intencionalmente a vítima, haverá concurso material dos crimes de estupro (art. 213) e homicídio qualificado (art. 121, § 2°).
Nota-se que o tratamento dado pelo legislador é diverso daquele dado ao crime do art. 157, § 3° com resultado lesão grave ou morte (latrocínio), bem como ao crime do art. 159, § 3° (extorsão mediante seqüestro seguida de lesão grave ou morte) que incide a qualificadora com resultado lesão grave ou morte dolosa ou culposa.
Quanto à idade da vítima necessário trazer à discussão problematizações trazidas com a presente redação. Falava-se em uma lacuna legislativa caso a vítima tivesse, na data do crime, exatamente 14 anos, ou seja, caso o crime fosse cometido na data de seu décimo quarto aniversário, já que o art. 217-A (estupro de vulnerável) define como vulnerável a vítima com menos de 14 anos.
Acreditamos que tal lacuna é inexistente, tendo em vista a disposição do art. 2° do ECA acerca da definição da idade, que se dá com relação à idade futura, e não com relação à idade presente. Sendo assim, a vítima, na data de seu décimo quarto aniversário contará com 15 anos de idade incompletos, e não exatamente 14 anos.
A contrário senso, para Gustavo Octaviano Diniz Junqueira “na hipótese, é possível defender que não se aplica a presente qualificadora por falta de previsão legal, mas entendemos que, apesar da pouca técnica demonstrada, a partir dos primeiros instantes do dia em que completa 14 anos a vítima passa a ser ‘maior de 14 anos’, permitindo assim coerência ao sistema” [11].
Necessário apontar que o conhecimento da idade da vítima é imprescindível para a incidência da presente qualificadora, já que o sujeito não poderia responder além de seu dolo, sob pena de um direito penal de responsabilização objetiva.

7. Lei dos crimes hediondos: a novel legislação sana a dúvida anteriormente existente quanto à hediondez dos crimes de estupro e de atentado violento ao pudor em suas formas simples.
Com a nova redação da lei 8072/90, o art. 1°, V colocou tanto o estupro simples, quanto suas formas qualificadas como sendo crime hediondo, não abrindo margem para discussões.

8. Ação Penal: embora o tema esteja tratado no art. 225 e em seu parágrafo único interessante destacar algumas posições quanto ao crime do art. 213, § 2° do CP, ou seja, quando há o resultado morte.
Estabelece o art. 225 “caput” do CP:

“Art. 225 - Nos crimes definidos nos capítulos I e II deste título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação”.

            Sendo assim, agora é regra que a ação penal nos delitos contra a “liberdade sexual” será pública condicionada à representação, e não mais privada. É interessante ressaltar que a ação penal é uma norma processual penal heterotópica, ou seja, é uma norma processual com efeitos matérias, e, sendo assim, excetua-se ao princípio processual penal do “tempus regit actum”.
            Questão interessante se dá com relação aos casos em que haja morte da vítima em decorrência do estupro, sem que a vítima possua familiares para que, de acordo com o art. 24, § 1° do CPP, ofereça a representação.
            O PGR ingressou com a ADI 4.301 junto ao STF solicitando, inclusive liminarmente, a inconstitucionalidade do art. 225 do CP para admitir que a ação penal, no caso de estupro com resultado morte, fosse pública incondicionada.
            Na ADI são expostos três fundamentos: “1°) ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana; 2°) ofensa ao princípio da proteção deficiente; 3°) possível extinção da punibilidade em massa nos processos em andamento, já que passariam a exigir manifestação da vítima (sob pena de decadência)” [12].
            Em contrapartida, sustenta Luiz Flávio Gomes que é impossível aplicar o art. 101 do CP (ação penal em crimes complexos) por duas razões: 1 - a norma do art. 225 é especial (frente ao art. 101 que é geral); 2 – a norma do art. 225 é posterior (o que afasta a regra anterior).
            Significa que, caso seja adotada a orientação do professor citado acima, nos casos em que a vítima, morta, não tivesse quem pudesse representá-la, o autor do fato não seria punido.
            Data vênia, tal entendimento encontra-se equivocado. Necessário frisar que a súmula 608 do STF não foi revogada, ainda que diante da alteração legislativa, sendo a maneira para sanar tal defeito no dispositivo legal do art. 225 do CP.
            A súmula 608 do STF traz a seguinte redação: “no crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação é pública incondicionada”. Desta forma, a presente súmula ainda pode ser aplicada aos crimes de estupro que haja violência real, causando a morte do ofendido ou lesão grave, podendo o MP oferecer a ação penal independentemente de representação da vítima.
            Quanto ao disposto no art. 225, parágrafo único do CP, inteligência do legislador em determinar que os crimes definidos nos Capítulos I e II quando a vítima for menor de 18 anos e maior de 14 anos, bem como vulnerável, seja pública incondicionada.


[1] NUCCI, Guilherme de Souza; ALVES, Jamil Chaim; ZIMMARO, Rafael Barone; BURRI, Juliana; CUNHA, Patrícia Bastos Monteiro; SILVA, Raphael Zanon da. O Crime de estupro sobre o prisma da lei 12.015/09 (Artigos 213 E 217-A do Código Penal). RT 902. Pág. 396.
[2] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26° edição. Ed: Malheiros. Pág. 105.
[3] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. 3. edição. Rio de Janeiro. Forense, 1956. Volume 8. Pág. 117-118.
[4] Foi noticiado na Rússia que um assaltante invadiu um salão de cabeleireiro anunciando um roubo, porém a proprietária conseguiu desarmá-lo e amarrá-lo. Em seguida, a mulher teria forçado o agente a ingerir remédio contra impotência sexual e o obrigado a manter relação sexual com ela por vários dias. (The Moscow Times).
[5] JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Direito Penal. Coleção Elementos do Direito. 9° edição. RT. 2009. Pág. 41.
[6] STF – HC 96.942/RS – Pleno – 18/06/2009 – Min. Ellen Gracie.
[7]Lei 12.015/2009 – Dos crimes contra a dignidade sexual – adendo. Disponível em scribd.com/doc/19590114/ADENDO12015emenda.
[8] Assim, diante dessa constatação, a Turma assentou que, caso o agente pratique estupro e atentado violento ao pudor no mesmo contexto e contra a mesma vítima, esse fato constitui um crime único, em virtude de que a figura do atentado violento ao pudor não mais constitui um tipo penal autônomo, ao revés, a prática de outro ato libidinoso diverso da conjunção carnal também constitui estupro – Informativo 0422 – Sexta Turma – STJ.
[9] HC 105533/PR – Min. Laurita Vaz – Quinta Turma – 07/02/11. Antes da edição da Lei n.º 12.015/2009 havia dois delitos autônomos, com penalidades igualmente independentes: o estupro e o atentado violento ao pudor. Com a vigência da referida lei, o art. 213 do Código Penal passa a ser um tipo misto cumulativo, uma vez que as condutas previstas no tipo têm, cada uma, "autonomia funcional e respondem a distintas espécies valorativas, com o que o delito se faz plural" (DE ASÚA, Jimenez, Tratado de Derecho Penal, Tomo  III, Buenos Aires, Editorial Losada, 1963, p. 916).
2. Tendo as condutas um modo de execução distinto, com aumento qualitativo do tipo de injusto, não há a possibilidade de se reconhecer a continuidade delitiva entre a cópula vaginal e o ato libidinoso diverso da conjunção carnal, mesmo depois de o Legislador tê-las inserido num só artigo de lei.
3. Se, durante o tempo em que a vítima esteve sob o poder do agente, ocorreu mais de uma conjunção carnal caracteriza-se o crime continuado entre as condutas, porquanto estar-se-á diante de uma repetição quantitativa do mesmo injusto. Todavia, se, além da conjunção carnal, houve outro ato libidinoso, como o coito anal, por exemplo, cada um desses caracteriza crime diferente e a pena será cumulativamente aplicada à reprimenda relativa à conjunção carnal.
Ou seja, a nova redação do art. 213 do Código Penal absorve o ato libidinoso em progressão ao estupro – classificável como “praeludia coiti” – e não o ato libidinoso autônomo.
[10] NUCCI, Guilherme de Souza; ALVES, Jamil Chaim; ZIMMARO, Rafael Barone; BURRI, Juliana; CUNHA, Patrícia Bastos Monteiro; SILVA, Raphael Zanon da. O Crime de estupro sobre o prisma da lei 12.015/09 (Artigos 213 E 217-A do Código Penal). RT 902. Pág. 403.
[11] JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Direito Penal. Coleção Elementos do Direito. 9° edição. RT. 2009. Pág. 267.
[12] CUNHA, Rogério Sanches. SILVA, Davi Castro. Código Penal para Concursos. 4° edição. 2011. Editora Juspodivm. Salvador. Pág. 423.