sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

RELATÓRIO FINAL DE IP - RECEPTAÇÃO CULPOSO - AUSÊNCIA DE DOLO - NÃO INDICIAMENTO - JUSTA CAUSA


 

RELATÓRIO FINAL DE INQUÉRITO POLICIAL

 

REF.: xxxxxxxxxxxxxxxxxx

AUTOR:  xxxxxxxxxxxxxxxxxx

VÍTIMA:  xxxxxxxxxxxxxxxxxx

ILÍCITO PENAL: ART. 180, § 3° DO CP

 

MM JUIZ DE DIREITO

 

               A POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DE SÃO PAULO, representada neste ato pelo Delegado de Polícia subscritor, que no uso de suas atribuições legais e regulamentares conferidas pelo art. 144, § 4°, da Constituição da República; art. 140, da Constituição Estadual Paulista; art. 4° e seguintes do Código de Processo Penal Brasileiro; art. 12 da Portaria DGP 18/1998; e demais dispositivos legais correlatos, respeitosamente reporta-se a V. Excelência o presente RELATÓRIO, com base no art. 10, § 1° do CPP.

 

1 – DOS FATOS

               Instaurou-se IP na data de 29.02.2012 para apurar crime de receptação praticado, em tese, por xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx.

               Conforme o B.O n° 1800/12 lavrados nesta Delegacia (fls. 04 a 07), os Policiais Militares que compunham a VTR 29204 foram acionados para comparecerem ao local do fato, Rua Americima – 159, para verificar um veículo que ostentava placas MQJ-7617, o qual possuía dispositivo de rastreamento, estando cadastrado em um veículo de placas EBA-6107, o qual estava bloqueado por estelionato – fato registrado no 35° DP sob o B.O n° 11.315/11.

               Segundo  o averiguado o veículo teria sido deixado em sua casa por uma pessoa chamada xxxxxxx, o qual havia lhe dito que o veículo havia sido reformado recentemente e que o chassi nele gravado (8AC9036725A930815) pertenceria a outro veículo, sinistrado e indenizado por seguradora. Fernando afirmou que xxxxxxx havia pedido para que guardasse o veículo em sua garagem, pagando-lhe a quantia a título de contraprestação, com o objetivo de regularizar os documentos do veículo.

               Por sua vez, a vítima  esclareceu que vendeu um veículo MERCEDEZ BENZ/SPRINTER de placas EBA-6107 à  xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx em dezembro de 2011, sendo que o cheque utilizado para pagar o veículo foi devolvido por “fraude”, registrando o B.O 11.315 no 35° DP.

               Entretanto, ao reativar o sistema de rastreamento do veículo, com o objetivo de localizá-lo, constatou que o rastreador indicou o veículo em questão (MB de placas MQJ-7617), acionando a PM para auxiliá-lo na localização do bem.

               A vítima ratificou sua declaração fornecida no B.O, bem como informou que soube do sistema de rastreamento por meio do proprietário anterior do veículo, sendo que procurou a empresa e pagou as parcelas vencidas para que fosse ativado o sistema e localizado o veículo. Na data de 01.03.2012 o veículo foi depositado ao declarante.

               Requisitada a carta laudo do veículo à montadora (fls. 33 a 36) foi requisitado exame pericial de identificação de veículo automotor ao IC (fls. 39).

               Recebido o laudo e juntado às fls. 43 a 46, foi concluído que havia adulteração de chassi, as etiquetas VIS não eram originais e que as plaquetas dos eixos foram reaproveitadas, sendo, portanto, que o veículo não corresponde àquele cujas características foram consignadas na carta laudo, sendo o veículo resultante da montagem de dois ou mais veículos semelhantes.

               O veículo foi entregue ao proprietário em auto próprio às fls. 54.

               Ouvido o averiguado às fls. 56 confirmou a versão apresentada no B.O que ensejou a instauração deste IP acrescentando que foi a procura de xxxx e que encontrou no interior da VAN um contrato que indicava a Rua  xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx e um livro, que pertencia a xxxx, e indicava o endereço  xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx.

               Por fim, declarou que após a apreensão do veículo nunca mais viu xxxx, bem como não conhece  xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx.

               Ouvidos os PM’s às fls. 73 e 74, em nada acrescentaram à apuração dos fatos.

               Por fim, às fls. 75,  xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, em declarações, negou que tenha praticado crime de estelionato contra a vítima.

              

               2 – DA OPINIÃO DO DELEGADO DE POLÍCIA

Conforme o recente Manual de Policia judiciária,

“(...) o relatório, peça técnica com forte conteúdo subjetivo, nada impedindo que nele sejam inseridos opiniões ou impressões pessoais, doutrinárias é até jurisprudenciais, determinando o juízo de valor da autoridade policial e que servem para indicar as razões do seu convencimento sobre o término do inquérito policial” (Manual de Polícia Judiciária. 6ª edição. 2012. Pág. 59).

 

2.1 – DA ANÁLISE DO TIPO PENAL

               Estabelece o art. 180 do CP:

“Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro de boa fé, a adquira, receba ou oculte: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa”.

 

               A receptação é crime acessório que guarda autonomia com o crime antecedente, ou seja, não é necessário que o agente do crime antecedente seja condenado, ou isento de pena (excludente de culpabilidade e escusa absolutória – excludente de punibilidade), bastando que o objeto receptado seja produto de crime.

               Este é o entendimento do art. 180, § 4° do CP que, mesmo sendo crime acessório, a receptação guarda autonomia em relação ao crime antecedente por duas regras: punição ainda que desconhecido o autor do crime antecedente; punição ainda que o autor do crime antecedente seja isento de pena.

               Interessante que, ao se falar no crime de receptação, é possível afirmar que o CP adotou a teoria bipartida do crime, já que, por exemplo, se um inimputável furtar objeto, aquele que receptar o objeto incorrerá no presente crime, já que a luz de tal teoria mencionada o inimputável praticou crime.

               Porém, tal hipótese não ocorreria se o CP adotasse a teoria tripartida do crime. Quando a lei fala em “produto de crime” e sendo o crime cometido por inculpável, seria impossível existir (crime de receptação), já que não há culpabilidade (para a teoria tripartida é integrante do conceito do crime).

               O art. 180 do CP exige que o bem seja produto de crime, de modo que o produto de uma contravenção não pode ser objeto de receptação. A título de informação é possível receptação de receptação (receptações sucessivas), ou seja, aquelas praticadas por pessoas diversas em relação ao mesmo bem, desde que todos conheçam sua procedência ilícita.

               Por sua vez, o art. 180, § 3° do CP estabelece:

“Adquirir ou receber coisa que, por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem oferece, deve presumir-se obtida por meio criminoso: Pena – detenção de um mês a um ano, ou multa, ou ambas as penas”.

               Ressalte-se que é o único crime contra o patrimônio previsto na modalidade culposa.

               A “condição de quem a oferece”, de acordo com Nucci, “é outro indicativo da imprudência do agente receptador. (...) Admite-se, no entanto, prova em sentido contrário, por parte do agente receptador, demonstrando não ter agido com culpa no caso concreto” (NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 2012. Pag. 886).

 

               2.2 – DO “DOLO” DO AGENTE E DA CONFIGURAÇÃO DO ART. 180, § 3° DO CP

               O tipo penal previsto no “caput” do art. 180 do CP exige como elemento subjetivo o dolo direito, uma vez que traz em sua descrição o seguinte: “(...) que sabe ser produto de crime (...)”.

               Este é o entendimento trazido por Rogério Sanches: “o caput é punido a título de dolo direito, devendo o agente ter certeza acerca da origem comprovada da coisa (dolo direto). A dúvida, dependendo das circunstâncias, poderá configurar receptação culposa” (SANCHES, Rogério. Código Penal para Concursos. 2011. Pag. 370).

               Mas o que vem a ser dolo?

               Dolo é a vontade de concretizar os elementos objetivos do tipo. Filia-se o direito penal no Brasil duas teorias: teoria da vontade – dolo direto (dolo é querer o resultado) e teoria do assentimento – dolo eventual (dolo é consentir, aceitar o resutado) – art. 18, I do CP. O dolo direito, o qual adequa-se à figura do art. 180 caput do CP, abrange o resultado pretendido; os meios escolhidos e as consequências secundárias inerentes aos meios.

               Com relação a culpa , esta é quebra do dever de cuidado objetivo (dever imposto a todos para que ajam de maneira cuidadosa) pela imprudência, negligência  ou imperícia.

               Ora, é possível afirmar, pelos elementos de prova colhidos até o momento, que o agente tinha a intenção de receber ou ocultar o veículo sabendo que era produto de crime? Acredito que não, e por este motivo entendo pela ausência de dolo direto do agente e pela configuração da culpa, uma vez que não se cercou das precauções devidas quanto ao recebimento do bem em detrimento à condição que lhe foi oferecido para que o “guardasse”.

 

2.3 - DA AUSÊNCIA DO INDICIAMENTO E, POR CONSEQUÊNCIA, DO FORMAL INTERROGATÓRIO DO AUTOR

               Não há que se questionar sobre a existência de dúvidas sobre a autoria do delito de receptação praticado por  xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx. Ocorre que, pelo entendimento desta autoridade, a conduta do autor adequa-se tipicamente ao fato descrito no art. 180, § 3° do CP, o qual tem como pena máxima cominada detenção de 01 ano.

               Diante disto, necessário discutir a real necessidade do interrogatório no Inquérito Policial afim de que o Douto Membro do Ministério Público forme sua convicção sobre a veracidade dos fatos e a autoria.

               Conforme ensina Gustavo O. Diniz Junqueira, o interrogatório

“apresenta uma natureza jurídica híbrida ou mista, porquanto constitui meio de defesa e meio de prova (...) Ostenta a natureza precípua de meio de defesa, pois consubstancia o ato processual, por excelência, de instrumentalização da autodefesa (...) (JUNQUEIRA. Processo Penal. Elementos do Direito. RT. 2012. Pag. 147).

 

               Sabendo que o Inquérito Policial é um procedimento administrativo regido pelo sistema inquisitorial, o interrogatório, não pode ser tido como meio de defesa, vez que não se aplica a esta fase os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa previstos no art. 5°, LV.

               Tratando o interrogatório nesta fase investigativa apenas como meio de prova, não se vê necessário, salvo em caso de indiciamento, que o interrogatório seja realizado com o objetivo de corroborar com as provas já existentes caso a materialidade do crime e sua autoria já estivessem definidas, o que ocorre no caso em tela.

               Portanto, no que tange à obrigatoriedade do Interrogatório na fase investigativa, pode-se falar em sua desnecessidade, ainda mais com a necessidade de observância aos prazos legais previstos, bem como a devida apuração dos fatos da forma mais rápida possível.

               No que tange ao indiciamento, “data máxima vênia”, este deve ser realizado somente em crimes cuja pena máxima exceda aos 04 anos, tendo em vista que seus efeitos devem ser levados em consideração quando contrapostos ao sistema constitucional vigente.

De se notar que o sistema processual brasileiro, com mais razão, a partir da lei 12.403/11, fixou certos limites com base nas penas em abstrato. Neste ponto, tendo ao entendimento de que aos crimes cuja pena máxima cominada supere 04 anos são aqueles entendidos pelo legislador como sendo de maior gravidade, o que, num primeiro momento, possibilitaria o ato do indiciamento.

 

2.4 – DA PRESENÇA DE JUSTA CAUSA PARA O OFERECIMENTO DA AÇÃO PENAL

Justa causa é definida como suporte probatório mínimo para que se possa basear a acusação, sendo a prova de materialidade e indícios razoáveis de autoria, o que pode ser apontado neste procedimento.

               Neste sentido, para Aury Lopes Jr. (Os sistemas de investigação preliminar no direito processual brasileiro), “o valor do IP é informativo, sendo o IP apenas para formar a justa causa para o oferecimento da ação penal, devendo o MP formar a sua opinião e apenas juntar à denúncia as provas não repetíveis, já que o Juiz deve ater-se somente às provas produzidas em âmbito processual para formar seu convencimento”.

               Ainda que discorde deste posicionamento, já que o art. 155 do CPP estabelece a possibilidade de o Juiz formar seu livre convencimento com base em provas colhidas durante a investigação policial, desde que não exclusivamente, Aury Lopes Jr. traz uma boa definição sobre o tema.

 

2.5 – DA OPINIÃO FINAL DO DELEGADO DE POLÍCIA

               Por meio do apurado neste Inquérito Policial é possível concluir que, no mínimo, xxxxxxxxxxxxxxxx agiu com culpa ao guardar o veículo em sua casa sem tomar maiores cuidados, como já demonstrado e justificado por esta autoridade, incorrendo no delito do art. 180, § 3° do CP.

Diante do exposto, remeto os autos ao MM Juiz para que abra vista ao Ministério Público afim de que tome as providências previstas no Código de Processo Penal brasileiro.

 

 

 

É o relatório

 

São Paulo, 18 de Fevereiro de 2013