É de conhecimento de todos que o programa Big Brother é sinônimo de fetichismo, voyerismo e promiscuidade. Dentro de tais qualidades, dentre outras, um caso de grande repercussão surgiu.
Como sempre, debaixo do edredom fatos notórios acontecem, afinal, para a mídia e para a sociedade brasileira o que mais interessa são as cenas quentes que podem ocorrer no programa. É claro que nenhum espectador se preocupa com aspectos sociológicos de convivência em grupo dos participantes.
Diante disto, devo aqui tecer breves comentários do caso Daniel X Monique, que se deu debaixo do edredom e em frente às câmeras.
Inicialmente, já que não tenho acesso ao contrato dos participantes, cabe ressaltar até que ponto é possível violar a vida privada e a intimidade do cidadão. Será que o direito constitucionalmente assegurado pelo art. 5°, X da Constituição Federal é disponível? Até que ponto o cidadão poderá abrir mão de um direito?
Ora, não se pode afirmar que nenhum direito assegurado pela Constituição Federal é absoluto, haja vista que nem mesmo a própria vida o é. Outro ponto a salientar no que diz respeito especificamente à intimidade é a possibilidade de violação do sigilo das comunicações telefônicas, por exemplo, permitida pelo art. 5°, XII da nossa Lei maior.
José Afonso da Silva já difere a intimidade da privacidade, entendendo, que a própria Constituição já faz tal distinção. Para o autor, citando René Ariel Dotti “(...) a intimidade se caracteriza como a esfera secreta da vida do indivíduo na qual este temo poder legal de evitar os demais”.
Sendo assim, nota-se, que a intimidade é algo além da privacidade, ou seja, a intimidade, é algo interno ao ser humano, enquanto a privacidade liga-se às relações externas de alguém com o meio social de maneira não pública.
Fica aqui apenas uma exposição para reflexão acerca da intimidade, privacidade e disponibilidade em prol de um jogo e ambições financeiras, já que “vale tudo por 1 milhão de reais”.
Tendo em vista esta breve introdução, gostaria de discutir algo ligado à área do Direito Penal e do Direito Processual Penal.
Como acompanhamos, (não farei menções já que o fato é notório) foi instaurado inquérito policial para a apuração do crime de estupro de vulnerável. De ressaltar que, com a alteração legislativa trazida pela lei 12.015/09 o crime de estupro de vulnerável é promovido através de ação penal pública incondicionada e, desta forma, fez bem a autoridade policial em instaurá-lo de ofício.
Caracteriza-se este crime pois a vítima, em uma das situações descritas pelo tipo penal, impossibilitada de oferecer resistência é “abusada sexualmente” pelo autor. De notar, também, com a redação nova trazida pela lei 12.015/09, a conduta, não necessariamente, deva ser realizada através de uma conjunção carnal, podendo caracterizar o crime uma mera “apalpadela nas nádegas”, por exemplo.
Ocorre que, em acordo com o que foi veiculado pela imprensa nítida são as imagens de que ato diverso da conjunção carnal houve (sendo que deste a vítima se lembra), não se sabendo se realmente houve a conjunção carnal (ato que a vítima não sabe se houve).
Diante disto, o Delegado de Polícia requisitou exame de corpo de delito para verificar a real existência da conjunção carnal, caso em que, se constatada, estaria comprovada a materialidade dos fatos, já que a vítima, por estar supostamente desacordada, não se lembrava de tal acontecimento.
Ocorre que a suposta vítima do crime de estupro se recusou a fazer o exame de corpo de delito para a comprovação de conjunção carnal.
Desta forma, trago aqui duas indagações: o consentimento da vítima para a realização de ato sexual deve ocorrer durante toda a prática do ato? É possível a vítima de um crime se recusar a prestar auxílio ao Estado na busca do exercício do “jus puniendi”?
Diante da primeira pergunta acredito que tal consentimento deve se dar durante todo o ato sexual, mas não somente em seu início. Desta forma, se concluir pelo sono repentino da “brother”, será o “brother” responsabilizado pelo crime em tela, qual seja, o de estupro de vulnerável, já que em determinado momento da prática do ato não mais havia consentimento da vítima, por estar ela em estado de vulnerabilidade.
A segunda questão merece maior atenção. Neste ponto, acredito que, o interesse público se sobrepõe ao interesse da vítima em não querer produzir provas. O famoso princípio da “não produção da prova contra si” somente se aplica ao suspeito/indiciado/acusado e não à vítima.
A busca da famigerada “verdade real” e da aplicação de um devido processo legal diante do princípio acusatório depende de toda prova necessária para lastrear eventual condenação ou absolvição.
Desta forma, estabelece o artigo 201 do CPP: “Sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser o autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações. § 1° Se, intimado para este fim, deixar de comparecer sem motivo justo, o ofendido poderá ser conduzido à presença da autoridade”.
Entendo que não pode o ofendido não querer produzir provas contra o suspeito/indiciado/acusado, tendo em vista que o interesse público da apuração criminal se sobrepõe ao direito individual do ofendido, ainda que o exame pericial revele questões íntimas da vítima.
Quanto à intimidade, como já mencionada, não é direito absoluto, ainda mais sendo alguém que pratica determinadas condutas impróprias no programa tratado. Na verdade a intimidade me parece não ser mais um direito, mas apenas uma palavra jogada em texto legal.
Para findar o assunto, a “brother” tem o dever de abrir mão de seu não querer colaborar com o Estado em prol do interesse público, realizando o exame de corpo de delito, sob pena do crime de desobediência.
Não quero dizer que a realização do exame para a constatação da conjunção carnal resolverá a questão, já que, como exposto, o crime de estupro não mais se resume a conjunção carnal, porém ajudará e muito na conclusão do inquérito policial.
Por fim, gostaria da fazer uma simples menção com relação à responsabilidade penal daqueles responsáveis pelas imagens, em tempo real, do programa.
Ora, partindo do pressuposto de que houve um crime, é possível questionar a responsabilidade penal dos responsáveis em acordo com o art. 13, § 2° do Código Penal que traz a responsabilidade da omissão.
Acredito ser possível, já que, havendo o crime, tais funcionários podiam e deviam agir para impedir o resultado nos moldes do art. 13, § 2°, ‘b’ “de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado”.
Vejamos sobre outra ótica. Se um “brother”, com uma faca na mão e com “animus necandi” começasse a agredir outro participante da casa poderiam os funcionários atuar como espectadores da prática criminosa? Com certeza não, e se assim atuassem responderiam pela omissão.
No mais, gostaria de deixar a crítica ao programa em questão, inapropriado por sinal, cuja restrição de horário e de faixa etária não se adequam ao proposto atualmente. Cada vez mais as empresas de televisão apelam por ibope e necessário traçar um limite jurídico para isso.
Não me refiro à censura, mas sim ao limite da moral e bom senso, que devem se sobrepor aos anseios financeiros das empresas televisivas.